Em ano de Copa do Mundo, os olhos se voltam para o futebol feminino, que após anos de proibições, restrições e dificuldades, têm visto a participação feminina no esporte mais praticado no mundo aumentar exponencialmente, com cerca de 30 milhões de mulheres praticando o esporte atualmente, e com a estimativa da FIFA de ter este número duplicado até 2026.
A fase de grupos da copa está chegando ao fim, e os números de audiência já impressionam: 459.547 pessoas compareceram aos estádios nos 16 jogos que compuseram a primeira rodada do torneio, um aumento de 54% em relação à edição passada em 2019. No Brasil, o canal no YouTube CazéTv quebrou o recorde de uma transmissão de futebol feminino na plataforma de streaming, com mais de 1 milhão de aparelhos conectados simultaneamente durante a estreia da seleção brasileira.
Infelizmente, apesar dos avanços e conquistas, uma já conhecida e velha ameaça apagou o brilho de algumas estrelas do mundial: a temida lesão no ligamento cruzado anterior do joelho. Diversas seleções tiveram desfalques devido a essa lesão, inclusive a brasileira com as lesões da goleira Lorena e da atacante Ludmila. Até nossa rainha Marta teve sua última participação em copas ameaçada após ficar 11 meses afastada devido a uma lesão no joelho esquerdo em março de 2022.
Sabe-se que as mulheres têm um risco cerca de três vezes maior de sofrer esse tipo de lesão durante a prática do futebol do que os homens. Alguns fatores de risco já são velhos conhecidos, como as diferenças na anatomia e biomecânica. A maior largura do quadril associada a um aumento do ângulo Q no joelho, a fossa intercondilar femoral mais estreita, maior prevalência de valgo dinâmico do joelho, a rotação interna do quadril e menor força em quadríceps, rotadores externos e abdutores do quadril têm sido identificados como elementos contribuintes para essa maior suscetibilidade às lesões do ligamento cruzado anterior.
Além das alterações hormonais próprias do gênero, como o pico estrogênico na fase folicular tardia, associado a um risco 2 vezes maior de lesões se comparado com as outras fases do ciclo menstrual, outros fatores devem ser considerados na abordagem preventiva.
A análise da técnica de movimento, tentando manter um adequado padrão motor, mesmo em situações de risco para lesão como mudança súbita de direção e na desaceleração do salto, o controle da carga de treino, o treinamento físico com a inclusão de atividades para desenvolvimento de propriocepção, força, capacidade pliométrica, velocidade de reação, e controle neuromuscular, e as condições do campo de jogo são fatores que requerem uma atenção especial.
Um ponto pouco explorado é da relação entre essa grave lesão e a grande disparidade de recursos empregados na modalidade, se comparado com a masculina, prejudicando, por muitas vezes, o acesso adequado das atletas a treinamento, profissionais capacitados, adoção de medidas preventivas, nutrição e suplementação, estrutura física como campo adequado e equipamentos, e até mesmo a equipe médica e a tratamento. Essa disparidade também é notada na pequena quantidade de estudos e dados sobre a modalidade, apesar do aumento do número de estudos de 20 em 2000 para 400 em 2020 – sendo apenas 10% focado no futebol de elite – ainda estamos engatinhando no conhecimento das peculiaridades do esporte feminino, e ainda faltam estudos para uma maior compreensão dos fatores de risco, incidência e prevalência de lesões para a criação e implementação de protocolos de prevenção eficazes e específicos para a modalidade.
Portanto, nossa atenção como ortopedistas deve se voltar para um acompanhamento mais aprofundado e cuidadoso das atletas de futebol feminino, buscando não apenas a reabilitação pós-lesão, mas também medidas preventivas eficazes que considerem as especificidades das mulheres. Aumentar a conscientização e os estudos sobre o esporte é essencial para reduzir o impacto das lesões e garantir uma melhor performance para nossas atletas.